quarta-feira, 4 de abril de 2012

... pelo mínimo: a vida!

Mais um ciclista morre atropelado (cicloassassinato):

fonte: as bicicletas


pelo mínimo: a vida.

ciclistas só querem uma coisa: paz. claro, todos querem paz. psicopatas também querem cometer seus crimes em paz.
o corpo estendido.jogado a 50 metros do local do atropelamento. ao fundo, a bicicleta que só teve danos na parte de trás - foto de felipe aragonez
mas a paz que os ciclistas querem, fere alguém? ciclistas por acaso poluem bastante? sim, bicicleta polui. mas muito pouco, e a poluição se dá na produção e depois no descarte. e olha lá….
mas e veículos automotores? o professor paulo saldiva, da faculdade de medicina da usp, sempre tem uma proposta: um sistema de transporte pra todo mundo na cidade. sistema ótimo. mas ele custará 20 vidas humanas diárias. vc aceitaria essa proposta? acha-a injusta?
pois ele diz: é o que já temos. em 2010 morreram no trânsito 1357 pessoas, no município de são paulo. some-se a isso cerca de 4.000 mortos por doenças causadas ou agravadas por poluição. são quase 5.500 mortes diárias.
retirado o corpo, o policial lava o sangue para liberar a passagem de mais carros - foto de felipe aragonez
retirado o corpo, o policial lava o sangue para liberar a passagem de mais carros - foto de felipe aragonez
há pessoas que não contribuem para essas mortes: não ligam motores. são pedestres, são ciclistas.
no entanto, são a parte fraca na fria e violenta relação entre desiguais no trânsito. não precisaria ser assim. não faltam leis. falta penas cumpri-las.
elas são descumpridas por descaso. por omissão. por negligência.
dou um exemplo. acabo de voltar de mais uma manifestação de protesto à morte de um ciclista. lauro neri, baiano de feira de santana, pedreiro, 49 anos, uma esposa, um filho. pego por trás por um carro dirigido por um motorista cuja habilitação é colocada em dúvida.
neri foi atropelado numa avenida que foi recapeada e entregue ao uso dos veículos sem qualquer sinalização na via. não há sinal de pare, faixa contínua, faixa de pedestres, nada.  não há radares.
a silhueta do corpo no chão e o protesto contra os omissos - foto de felipe aragonez
a silhueta do corpo no chão e o protesto contra os omissos - foto de felipe aragonez
está assim há pelo menos 2 meses. conforme citado dois posts atrás nesse blog, havia sido prometida uma ciclovia cuja construção deveria ter se iniciado em 2007 e cuja entrega deveria no máximo chegar a 2010. estamos em 2012, e não há sequer sinal de início de obras no local para a construção da dita ciclovia. o local é de intenso tráfego de ciclistas, conforme contagem já feita pela associação de ciclistas urbanos de são paulo, ciclocidade.
mas… ciclistas não são prioridade. são apenas custo. entram apenas naquela conta da máquina que exige 20 mortos diários para funcionar.
fizemos o protesto que já se tornou rotina. instalar uma ghost-bike, bicicleta pintada de branco para lembrar o local onde se deu a morte. as bicicletinhas brancas pintadas no chão pra lembrar aos motoristas de que ali circulam bicicletas. foi pintada uma faixa de pedestres onde o poder público deixou de cumprir sua função.
a faixa de pedestres pintada pelos cidadãos, e não pelo poder público. foto de sabrina duran
a faixa de pedestres pintada pelos cidadãos, e não pelo poder público. foto de sabrina duran
velas foram acendidas. orações feitas. conversas com testemunhas oculares. o sangue ainda no asfalto.
a bicicleta, como diz sempre aline cavalcante, humaniza. humaniza pois nos lembra da única característica que nos diferencia dos animais: a ciência da própria finitude.
infelizmente as pessoas tendem a esquecer disso. esquecer que a qualquer momento podemos não mais estar aqui. onde estaremos após esse momento é assunto das religiões, e cada um tem a sua. mas, não no além, mas no aquém, estamos todos aqui. jungidos, juntos. em convivência harmoniosa ou em atrito.
ciclistas só querem uma convivência harmoniosa. ciclistas não querem matar. nem podem. sua respiração não polui o ambiente. não atropelam e matam motoristas.
ciclistas são só… ciclistas! nada além disso. silenciosos mesmo quando gritam. ecológicos mesmo quando jogam algum papel no chão. de paz mesmo quando mal-encarados.  nada além disso. tão inócuos que sequer são vítimas de sequestro-relâmpago.
mas ciclistas são um incômodo. insistem em não dar a mínima àquilo tudo pelo qual as pessoas lutam a vida inteira. não vêem que satisfação, que conquista é comprar um carro. insistem em serem felizes sem pegar um cruzeiro marítimo, apenas pedalando de são paulo a santos, por exemplo, por um caminho diferente, e vêem nisso uma grande aventura.
a cidade que é a mesma na qual vivem os motoristas, é tão diferente para os ciclistas! como diz joão guilherme lacerda, a bicicleta é um óculos para ver a realidade social. e como corrige federica fochesato, é um óculos para ver tudo!
e é, de fato é. o ciclista é aquela pessoa irritante por isso. é a criança ingênua que vê que o rei está nu.
e sim, o poder público está nu. as ruas estão mal-cuidadas. mal-fiscalizadas. mal-sinalizadas. e isso é intencional, muita gente lucra muito com isso.
o sistema é perverso, e o ciclista vê isso. e insiste em viver de outra forma, consumir de outro modo, ter outros valores, é sempre alegre, está sempre bem-humorado, ousa ser feliz. isso irrita. melhor não ver essas pessoas…
e sim, ciclistas são invisíveis. são vistos apenas quando o sangue escorre pelo chão. e precisam parar avenidas e pintar as faixas de pedestres que o poder público não pinta.
e o grande pacto da mediocridade (motoristas fingem que cumpre o código de trânsito, a prefeitura finge que cumpre as leis e finge que fiscaliza) é firmado e a máquina de moer carne, 20 pessoas por dia, continua girando.
granam as montadoras, as concessionárias, os mecânicos, os fabricantes de peças automotivas, os donos de auto-escolas, as seguradoras, as distribuidoras de combustível, o poder público que arrecada ipva e multas, os fabricantes de medicamentos, de talas, de gessos, de cadeiras de rodas, de muletas….
são paulo é uma cidade de muitos consumidores e poucos cidadãos. alguns destes, tão raros, hoje pegaram suas bicicletas e em homenagem a um colega cuja morte lembrou mais uma vez a situação existencial de todos, fizeram o que o poder público e a sociedade civil não fizeram. fizeram um mínimo, pela vida.
mas a pergunta ainda ficou no ar. até quando? quantas mais ghost-bikes teremos que instalar até que essa cidade humanize-se? até quando os mais fracos e inofensivos serão mortos no altar sacrificial do culto ao deus-carro?
até quando? infelizmente não sei.
a ghost-bike de lauro neri. quantas mais serão necessárias? foto de fernanda blandino
durmo com o gosto amargo na boca. rirão de mim. dirão que sou apelativo. mas já vi essa morte de muito perto. eu sei o que passou naquele último segundo de vida de lauro neri. eu sei, e sei lá quantos outros amigos também o sabem. infelizmente. e até quando saberemos isso? até quanod viveremos no eterno quase, que às vezes some do início da frase? o “quase morri” que vira um simples “morri”?
até quando sr. prefeito? até quando?

Nenhum comentário:

Postar um comentário