Mais um ciclista morre atropelado (cicloassassinato):
fonte: as bicicletas
pelo mínimo: a vida.
ciclistas só querem uma coisa: paz. claro, todos querem paz. psicopatas também querem cometer seus crimes em paz.
o
corpo estendido.jogado a 50 metros do local do atropelamento. ao fundo,
a bicicleta que só teve danos na parte de trás - foto de felipe
aragonez
mas a paz que os
ciclistas querem, fere alguém? ciclistas por acaso poluem bastante?
sim, bicicleta polui. mas muito pouco, e a poluição se dá na produção e
depois no descarte. e olha lá….
mas e veículos automotores? o professor
paulo saldiva, da faculdade de medicina da usp, sempre tem uma proposta:
um sistema de transporte pra todo mundo na cidade. sistema ótimo. mas
ele custará 20 vidas humanas diárias. vc aceitaria essa proposta? acha-a
injusta?
pois ele diz: é o que já temos. em 2010 morreram no trânsito 1357
pessoas, no município de são paulo. some-se a isso cerca de 4.000 mortos
por doenças causadas ou agravadas por poluição. são quase 5.500 mortes
diárias.
retirado o corpo, o policial lava o sangue para liberar a passagem de mais carros - foto de felipe aragonez
há pessoas que não contribuem para essas mortes: não ligam motores. são pedestres, são ciclistas.
no entanto, são a parte fraca na fria e violenta relação entre
desiguais no trânsito. não precisaria ser assim. não faltam leis. falta
penas cumpri-las.
elas são descumpridas por descaso. por omissão. por negligência.
dou um exemplo. acabo de voltar de mais uma manifestação de protesto à
morte de um ciclista. lauro neri, baiano de feira de santana, pedreiro,
49 anos, uma esposa, um filho. pego por trás por um carro dirigido por
um motorista cuja habilitação é colocada em dúvida.
neri foi atropelado numa avenida que foi recapeada e entregue ao uso
dos veículos sem qualquer sinalização na via. não há sinal de pare,
faixa contínua, faixa de pedestres, nada. não há radares.
a silhueta do corpo no chão e o protesto contra os omissos - foto de felipe aragonez
está assim há pelo menos 2 meses. conforme citado dois posts atrás
nesse blog, havia sido prometida uma ciclovia cuja construção deveria
ter se iniciado em 2007 e cuja entrega deveria no máximo chegar a 2010.
estamos em 2012, e não há sequer sinal de início de obras no local para a
construção da dita ciclovia. o local é de intenso tráfego de ciclistas,
conforme contagem já feita pela associação de ciclistas urbanos de são
paulo, ciclocidade.
mas… ciclistas não são prioridade. são apenas custo. entram apenas
naquela conta da máquina que exige 20 mortos diários para funcionar.
fizemos o protesto que já se tornou rotina. instalar uma ghost-bike,
bicicleta pintada de branco para lembrar o local onde se deu a morte. as
bicicletinhas brancas pintadas no chão pra lembrar aos motoristas de
que ali circulam bicicletas. foi pintada uma faixa de pedestres onde o
poder público deixou de cumprir sua função.
a faixa de pedestres pintada pelos cidadãos, e não pelo poder público. foto de sabrina duran
velas foram acendidas. orações feitas. conversas com testemunhas oculares. o sangue ainda no asfalto.
a bicicleta, como diz sempre aline cavalcante, humaniza. humaniza
pois nos lembra da única característica que nos diferencia dos animais: a
ciência da própria finitude.
infelizmente as pessoas tendem a esquecer disso. esquecer que a
qualquer momento podemos não mais estar aqui. onde estaremos após esse
momento é assunto das religiões, e cada um tem a sua. mas, não no além,
mas no aquém, estamos todos aqui. jungidos, juntos. em convivência
harmoniosa ou em atrito.
ciclistas só querem uma convivência harmoniosa. ciclistas não querem
matar. nem podem. sua respiração não polui o ambiente. não atropelam e
matam motoristas.
ciclistas são só… ciclistas! nada além disso. silenciosos mesmo
quando gritam. ecológicos mesmo quando jogam algum papel no chão. de paz
mesmo quando mal-encarados. nada além disso. tão inócuos que sequer
são vítimas de sequestro-relâmpago.
mas ciclistas são um incômodo. insistem em não dar a mínima àquilo
tudo pelo qual as pessoas lutam a vida inteira. não vêem que satisfação,
que conquista é comprar um carro. insistem em serem felizes sem pegar
um cruzeiro marítimo, apenas pedalando de são paulo a santos, por
exemplo, por um caminho diferente, e vêem nisso uma grande aventura.
a cidade que é a mesma na qual vivem os motoristas, é tão diferente
para os ciclistas! como diz joão guilherme lacerda, a bicicleta é um
óculos para ver a realidade social. e como corrige federica fochesato, é
um óculos para ver tudo!
e é, de fato é. o ciclista é aquela pessoa irritante por isso. é a criança ingênua que vê que o rei está nu.
e sim, o poder público está nu. as ruas estão mal-cuidadas.
mal-fiscalizadas. mal-sinalizadas. e isso é intencional, muita gente
lucra muito com isso.
o sistema é perverso, e o ciclista vê isso. e insiste em viver de
outra forma, consumir de outro modo, ter outros valores, é sempre
alegre, está sempre bem-humorado, ousa ser feliz. isso irrita. melhor
não ver essas pessoas…
e sim, ciclistas são invisíveis. são vistos apenas quando o sangue
escorre pelo chão. e precisam parar avenidas e pintar as faixas de
pedestres que o poder público não pinta.
e o grande pacto da mediocridade (motoristas fingem que cumpre o
código de trânsito, a prefeitura finge que cumpre as leis e finge que
fiscaliza) é firmado e a máquina de moer carne, 20 pessoas por dia,
continua girando.
granam as montadoras, as concessionárias, os mecânicos, os
fabricantes de peças automotivas, os donos de auto-escolas, as
seguradoras, as distribuidoras de combustível, o poder público que
arrecada ipva e multas, os fabricantes de medicamentos, de talas, de
gessos, de cadeiras de rodas, de muletas….
são paulo é uma cidade de muitos consumidores e poucos cidadãos.
alguns destes, tão raros, hoje pegaram suas bicicletas e em homenagem a
um colega cuja morte lembrou mais uma vez a situação existencial de
todos, fizeram o que o poder público e a sociedade civil não fizeram.
fizeram um mínimo, pela vida.
mas a pergunta ainda ficou no ar. até quando? quantas mais
ghost-bikes teremos que instalar até que essa cidade humanize-se? até
quando os mais fracos e inofensivos serão mortos no altar sacrificial do
culto ao deus-carro?
até quando? infelizmente não sei.
a ghost-bike de lauro neri. quantas mais serão necessárias? foto de fernanda blandino
durmo com o gosto amargo na boca. rirão de mim. dirão que sou
apelativo. mas já vi essa morte de muito perto. eu sei o que passou
naquele último segundo de vida de lauro neri. eu sei, e sei lá quantos
outros amigos também o sabem. infelizmente. e até quando saberemos isso?
até quanod viveremos no eterno quase, que às vezes some do início da
frase? o “quase morri” que vira um simples “morri”?
até quando sr. prefeito? até quando?