domingo, 24 de julho de 2011

Entrevista com CLÁUDIO DE SENNA F. - Vice-presidente da Associação Nacional dos Transportes Públicos - ANTP

CLÁUDIO DE SENNA FREDERICO
(Vice-presidente da Associação Nacional dos Transportes Públicos - ANTP)

Especialista em transportes é contra benefícios às montadoras e a favor da limitação do uso do automóvel

"O transporte público emprega mais do que a indústria de carros"


A liberdade do cidadão de comprar um carro ou de se deslocar diariamente com esse meio de transporte individual deve ser questionada. O automóvel, assim como as drogas, tem componentes nocivos à sociedade, e a sua publicidade deveria ser proibida.
Essas opiniões são do engenheiro Cláudio de Senna Frederico, 60, que, desde abril passado, integra um grupo de nove especialistas convidados pela UITP (principal associação internacional de transportes públicos) para elaborar as diretrizes do setor que deveriam ser adotadas até 2020.
"O automóvel é um agente não só de transporte, mas modificador da cidade, que cria consequências para os outros", afirma Frederico, crítico ferrenho da intenção do governo de dar vantagens às montadoras para atenuar a crise automotiva.
Frederico defende a abertura da "contabilidade" do transporte, que, segundo ele, mostrará que os usuários dos carros pagam somente de 10% a 20% dos custos que os veículos representam. O restante é diluído na conta de toda população-com os congestionamentos, a poluição e os acidentes. Para ele, sem a ampla divulgação dessa "contabilidade", a sociedade vai aprender sobre a necessidade de racionalizar e restringir a utilização do carro apenas quando chegar ao "caos". Frederico também contesta a idéia de que, para resolver seus problemas de transporte, São Paulo só deveria investir em metrô. Ele é defensor da substituição de alguns projetos por alternativas mais baratas. Cita como
modelo a proposta do Transmilênio (um tipo de corredor de ônibus moderno), adotada há três anos em Bogotá (Colômbia).

Folha - Qual é a intenção do grupo formado pela UITP?
Cláudio de Senna Frederico - O objetivo foi reunir um grupo que pense sobre o que está acontecendo com o transporte no mundo e que motive todos a caminhar numa direção. Há idéias heterogêneas. O que deve ser feito na América Latina até 2020 é completamente diferente do que deve ser feito em
Paris. A Europa construiu seu transporte coletivo na época em que ninguém contestava o fato de que ele era o modo como as pessoas deveriam se locomover. Na América Latina, acontece o contrário. Fala-se a partir de uma estaca zero, sem dinheiro, e há uma série de estímulos para que todos tenham
seu carro.
O modo de transporte determina como a cidade será. Se a China tivesse uma taxa de uso de automóvel semelhante à da Europa, não haveria na terra metais e combustíveis suficientes para alimentar essa frota. Esse modelo [baseado no carro] requer que mais de 50% da terra seja dedicada ao transporte.

Folha - O combate ao transporte individual é uma unanimidade?
Frederico - Não. O que precisa haver não é uma unanimidade na conclusão, mas, sim, discutir no mesmo plano. Não se pode discutir o automóvel sem discutir o que ele acarreta. Não se pode discutir o transporte meramente
para saber qual é forma mais rápida para ir daqui ao aeroporto. Eu, como consumidor, teria direito de ir aonde eu quiser. Mas a discussão não é bem essa.
Temos que discutir as consequências do seu direito de escolha e o custo que você vai pagar por ele. É um problema de contabilidade. Ou o carro paga o total da conta que ele representa para a sociedade ou todos pagam a conta. Daí, ciente de quanto custa tudo, cada um escolhe e paga. O automóvel custaria dez vezes o que custa hoje. A estimativa mundial é que o comprador arca, em relação aos custos do automóvel, com 10% a 20% do total que todos pagam para que exista esse carro.

Folha - Os motoristas reclamam que já gastam muito com IPVA, gasolina, pedágio...
Frederico - O que as pessoas estão talvez reclamando não é de pagar mais ou menos imposto. É de não terem controle ou confiança na destinação. E isso é real. Em vez de a contabilidade pública explicitar qual é o custo das coisas, incluindo tudo no pacote da decisão, ela mostra uma conta única.

Folha - A adoção de medidas de restrição veicular, como pedágios urbanos, é uma tendência?
Frederico - Eu diria que a restrição aos automóveis não é uma unanimidade. Mas já está claro para as sociedades mais evoluídas, inclusive para a norte-americana, que não é uma simples decisão de consumo, como usar camisas azuis ou amarelas.
O automóvel é um agente não só de transporte, mas modificador da cidade, que cria consequências para os outros que não são donos de automóvel. Quando mais um cara decide comprar um automóvel, alguém na cidade precisa pensar em mais rua, em mais estacionamento, em mais médicos.

Folha - Em São Paulo, quando se fala em adotar alguma medida mais drástica de restrição veicular, os técnicos se dividem: uns acham que, antes, é preciso oferecer uma opção de transporte de qualidade; outros, que essa medida é a única forma de obter recursos para a melhoria. Qual é a posição
do sr.?
Frederico - Os dois têm razão. Um, com desconfiança do que vai acontecer. Outro, pela falta de recursos para fazer acontecer. Talvez fosse mais fácil, pelo menos para determinados projetos, aceitar a vinculação de recursos. Hoje, a maioria dos recursos está vinculada a boas intenções, à saúde, à educação. Mas qual saúde? Dentro de 20 anos terei qual pronto-socorro? Qual atendimento? É preciso explicitar. Se você disser: "para um transporte de qualidade, precisamos de mais 100 km de metrô. Vai custar tanto. Pode ser feito, mas os recursos vão ter que vir daqui e só poderão ser usados para isso". Eu não vou dizer que as pessoas vão sair loucas por aí querendo dar dinheiro para esse projeto, mas talvez já comece a mudar o diálogo.

Folha - O sr. seria favorável à adoção de um pedágio urbano mesmo contra a
vontade popular?
Frederico - Eu sou sempre contra um governo adotar uma coisa que seja contra a vontade popular. Ele tem que tentar conseguir que a opinião pública mude. Há duas formas. A primeira, educacional. Se você muda a contabilidade, talvez as pessoas comecem a enxergar. A outra [forma] é aquele processo da guerra. Hoje os Estados Unidos conseguem qualquer coisa citando uma palavra mágica: 11 de Setembro. O cara fala: todo mundo vai andar sem calça, qualquer absurdo, todo mundo fica quieto e aceita. É deixar o caos prevalecer, as pessoas aprenderem por meio do caos. As coisas vão piorando, piorando, e aí as pessoas começam a se interessar pelo assunto. Hoje, a tendência é essa.

Folha - Há quem considere elitista a intenção de cobrar mais pelo uso do carro. Os ricos teriam como pagar e continuar com seus carros. Os pobres, não. Afinal, pobre tem direito de ter e de usar carro?
Frederico - Na nossa estrutura, o pobre não tem direito a absolutamente nada que não seja público. O carro não é um picolé. Se é caro, você já definiu que não é para o pobre ter. Com o transporte público acontece o contrário.

Folha - Mas o carro, então, é coisa para rico?
Frederico - Automóvel é coisa do mercado de consumo, para quem puder consumir. O único modo de o carro ser um direito do pobre é ele ser dado. Ninguém fez isso em lugar nenhum do mundo. Jamais foi difundida a idéia de que o automóvel participa das coisas que devem ser fornecidas a todos, assim como a água, o ar, a educação, a saúde. No fundo, as pessoas reconhecem que o carro não é uma necessidade fundamental.

Folha - O transporte público é para quem? É para o rico também?
Frederico - O transporte público é para todo mundo dentro de determinadas circunstâncias. O transporte público tem que ser uma coisa em que a opção é feita em função da necessidade da cidade, e não do indivíduo. O crack, por exemplo, deve ser livre? Deve ser bom, não? Os caras experimentam e depois não largam... Mas deve ser um direito o cara continuara usar crack?

Folha - O carro é uma droga?
Frederico - Ele tem um componente disso. É inevitável ter um componente social para determinadas coisas que, embora sejam agradáveis, vão trazer consequências para a sociedade. Ela vai ter que dizer: vai ter que ser usado limitadamente.

Folha - A popularização do carro é negativa?
Frederico - Na medida em que a pessoa só consegue se realizar socialmente em função do carro, a popularização é negativa. Hoje, no Brasil, o carro já começa a ser mais importante do que a moradia.
Existe um componente que melhora a vida das pessoas. Mas existe um lado dessa opção que é pré-conduzido. Esse componente é muito ruim. Quando se fala em disciplinar o carro, não se tem a intenção de eliminar o automóvel. Mas pode aumentar o nível de racionalidade urbana do uso do carro
e diminuir um pouco essas pressões psicológicas. Eu não tenho a menor dúvida de que, da mesma forma que a sociedade acha natural que não se pode ter publicidade de fumo do cigarro, não poderia
haver publicidade de automóvel. Ou ele é uma necessidade que não precisa de publicidade, ou ele está se promovendo como uma necessidade, criando uma pressão urbana. É diferente de uma propaganda de camisa. Se eu tiver dez camisas, eu não mudo a cidade, não mudo a vida dos outros.

Folha - Há especialistas que apontam a construção de mais metrô como a única solução do transporte na cidade de São Paulo. O sr. concorda com isso?
Frederico - Não. Sem uma rede maior de metrô, não vai se resolver o problema de transporte público. Mas uma rede maior pode também não resolver. Ou seja, é necessário, mas não é suficiente. O México é um exemplo. A situação lá é pior do que a daqui. E eles têm mais metrô do que a gente. Tudo bem que é necessário ter mais metrô. Mas há outras coisas que precisam ser feitas. Os outros meios de transporte coletivo precisam melhorar. Durante muito tempo, ficou todo mundo escondido atrás da saia do metrô.

Folha - Mas a prioridade deve ser dada ao metrô?
Frederico - O metrô apenas faz parte da equação de solução. O Transmilênio é uma novidade a ser considerada. A ligação com Guarulhos [que consta do plano de investimentos do Estado para [2020] deve ser metrô ou Transmilênio? Acho que vale pensar.

Folha - O Transmilênio poderia substituir os projetos de metrô?
Frederico - O Transmilênio, em uma cidade média, pode enfrentar essa discussão.
Em São Paulo, você precisa aproveitar a ferrovia, construir linhas novas [demetrô] e pensar melhor se todas as linhas que se pretendia fazer devem ser feitas ou se alguma pode ser corredor de ônibus. Em cidades do porte de São Paulo, não há solução sem adotar todos os meios, inclusive metrô e Transmilênio.

Folha - Essa visão já é bem aceita?
Frederico - Já há um consenso. Mesmo no Metrô de São Paulo. A única dificuldade é que, no Metrô, muitas vezes só são defendidos outros [meios de transporte] que sejam complementares a ele, ou seja, sempre um processo hierárquico de subordinação, de capilaridade. Existem outros meios de transporte que competem com metrô e que, em certas circunstâncias, devem ser adotados em vez de metrô. O que não significa que o metrô não deva existir e não deva se expandir.

Folha - O que o sr. acha do modelo de transporte da prefeitura?
Frederico - Eu tenho visto com bons olhos. Provavelmente, há uma série de falhas -assim como em todos os processos. Mas acho que alguma coisa tinha que ser feita. E ela está sendo feita. A prefeitura está tentando, tem um projeto com coerência, com algumas falhas. A prefeitura fez uma opção estratégica: prefere fazer 400 km de melhorias de faixas de ônibus do que 50 km de grandes corredores.
Eu não concordo muito com isso. Acho que esse negócio da faixa é interessante, mas se viesse como um complemento de uma estrutura básica mais pesada.

Folha - O transporte coletivo tem que ser subsidiado?
Frederico - Ele já é e tem que continuar sendo subsidiado. Temos que equilibrar a balança. É preciso decidir coisas óbvias. Você discute o fato de reduzir IPI para automóvel porque está gerando desemprego, mas você nunca
conseguiu resolver que o ônibus não pague IPI. O carro popular, durante muito tempo, não pagou IPI, o táxi não paga. Por que o ônibus paga?

Folha - O governo está negociando benefícios às montadoras. O que o sr. Acha dessa discussão?
Frederico - É equivocada. A minha pergunta é a seguinte: essa é a forma mais barata de gerar emprego? A indústria automobilística gera cada vez menos emprego por real investido nela. O transporte público emprega muito mais. O que tem que ser contabilizado no transporte público para o passageiro pagar é uma parcela que precisa ser definida. Você chama isso de subsídio? Mas você diz que o carro é subsidiado? Ninguém diz. Todo mundo diz: eu pago meu carro, pago todas as contas. Paga uma ova! Paga só 20% da conta. As outras contas não são apresentadas.

Folha - A discussão de subsídio às montadoras é restrita ao Brasil?
Frederico - Eu acho um absurdo. Não é somente aqui. Sempre aconteceu. A visibilidade da indústria automobilística não é só pelo produto. Uma vez que ele se tornou um produto muito visível, muito desejado, popular, ele fez isso em termos também de se aliar aos destinos da nação. Se a indústria automobilística está mal, o país está mal. A bandeira brasileira e a da indústria automobilística estão abraçadas.

ALENCAR IZIDORO DA REPORTAGEM LOCAL

Folha de São Paulo, segunda 04 de agosto de 2003

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